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De Paulo Sousa a Dorival, um futebol feito de pessoas e relações descartáveis


O Flamengo é o tema da vez, a queda de Paulo Sousa apenas o exemplo mais recente. Mas é preciso notar como as últimas horas do português no cargo retratam um traço marcante do ambiente do futebol: nada está moldado para que se crie laços, para que se cultive relações e compromissos sejam valorizados. Pessoas são descartáveis, valem pouco. E, ainda neste contexto, é quase obrigatório reconhecer que o Flamengo deu um passo adiante, explorou novas fronteiras na prática do constrangimento.

É possível achar que Paulo Sousa fez um trabalho decepcionante, ruim ou terrível. O difícil é discordar que o processo de sua saída, a forma como o clube permitiu que ele agonizasse lentamente, com cada etapa de seu isolamento relatada em tempo real, atingiu um nível de desrespeito difícil de equiparar.

Paulo Sousa, Fluminense x Flamengo, Brasileiro 2022 — Foto: André Durão/ge
1 de 1 Paulo Sousa, Fluminense x Flamengo, Brasileiro 2022 — Foto: André Durão/ge

Paulo Sousa, Fluminense x Flamengo, Brasileiro 2022 — Foto: André Durão/ge

Atibaia, no interior de São Paulo, assistiu a uma espécie de teatro do absurdo. O português é vivido no futebol e, certamente, viajou sabendo o mesmo que qualquer pessoa com algum interesse pelo tema sabia: na prática, ele não era mais o treinador do Flamengo. O clube decidira buscar outros nomes, e já o fazia. A conversa com Dorival Junior, obviamente, não aconteceu toda ela nesta quinta-feira. Não por acaso, enfrentou o Bragantino um time rubro-negro desmobilizado, composto por jogadores igualmente vividos, e todos cientes do que aconteceria. Enquanto o jogo era disputado, as câmeras buscavam insistentemente Paulo Sousa, transformado em personagem da noite não por sua influência nas ações da partida, mas pelo inusitado de ser um interino de si mesmo.

Como se não bastasse esquentar o lugar enquanto o Flamengo conversava com outro técnico, Paulo Sousa foi a campo comandar um treino despropositado enquanto o país todo já sabia que ele estava demitido e Dorival Júnior, acordado com o clube. Alias, noite de quinta-feira adentro, o Flamengo não anunciou o novo treinador. Talvez por falta de alguma assinatura ou para não produzir provas contra si mesmo, ou seja, não oficializar que a diretoria decidira só comunicar a Paulo Sousa sua saída quando houvesse um substituto. O respeito à pessoa, nestas horas, importa pouco no futebol. Parecia claro que o trabalho do português tinha pouquíssimas chances de prosperar, era até compreensível sua demissão. Mas há jeitos de fazê-la com mais classe.

Eis um ambiente em que cada um se defende, em que os vínculos contam pouco. Talvez até seja melhor não criá-los, cultivar a impessoalidade para facilitar as rupturas. Paulo Sousa tampouco se importou em expor problemas no episódio com Diego Alves, a ponto de levá-lo a um aquecimento antes de cortá-lo até do banco, algo que serviu apenas para produzir pautas de programas de debates. Pareceu também pouco preocupado em preservar atletas quando falou de erros individuais após uma derrota em que seu time fora coletivamente superado.

Neste ponto, aliás, seria útil, enquanto degola mais um técnico, que o Flamengo percebesse um padrão. O clube parece um ambiente tão contaminado que cada treinador vive seus últimos dias num esforço de autodefesa, protegendo-se de um entorno hostil. O que vai das influências políticas, dos vazamentos de informações constrangedoras, chegando à complexidade de um elenco que, hoje, parece difícil de ser convencido de uma ideia de futebol. O mesmo Flamengo que num ano investiu em funcionários e processos de sua área científica, desta vez terceirizou a um treinador estrangeiro toda a sua linha de trabalho. A ponto de ficar inseguro de demitir um técnico por falta de um funcionário capaz de comandar um treino. O Flamengo de receitas da ordem de R$ 1 bilhão por ano, coloca numa mesa para conversar com candidatos ao cargo estrategicamente mais importante dois dirigentes sem qualquer formação técnica. Marcos Braz e Bruno Spindel podem ter ótimas virtudes, e todos os relatos indicam que as têm, mas entre elas não está uma formação técnica em futebol. Quando foram à Europa entrevistar treinadores e discutir sobre modelos de jogo, quando sentaram à mesa com Paulo Sousa para ouvir suas ideias, os dois lados da conversa estavam claramente desequilibrados em termos de conhecimento de futebol.

E agora chega Dorival Júnior, que não se constrangeu em romper um trabalho de apenas 73 dias, menos de duas semanas antes de clássicos decisivos pela Copa do Brasil e a 20 dias do mata-mata da Copa Sul-Americana. Talvez o faça, entre outras coisas, porque o clube que está deixando o contratou dias depois de demitir um técnico que, trazido para os últimos três meses de 2021, teve apenas 13 jogos e menos de dois meses de trabalho em 2022. Mais curioso ainda é que Dorival largue o trabalho atual para assumir um clube que tem em seus quadros gerenciais gente que esteve em pelo menos uma das duas vezes em que o Flamengo abriu mão de seus serviços num espaço de nove anos. Em 2013, o argumento era de que seu salário era alto; em 2018, fez uma espécie de mandato tampão antes de o clube escolher Abel Braga para começar 2019. Agora, voltou a servir.

É fato que, respeitadas as regras contratuais, todo trabalhador deve ter liberdade para receber e aceitar ofertas, assim como empregadores têm direito a dispensá-lo. Mas é míope ignorar que cada profissão tem suas peculiaridades. No futebol, a forma e o momento das rupturas podem ter efeitos devastadores em projetos e processos. Mas quem está preocupado com eles?

No fundo, quando os clubes decidiram abandonar a regra que limitava trocas no comando – e aqui nem cabe discutir se o regulamento estava ou não produzindo efeitos -, o futebol brasileiro escolheu continuar funcionando desta forma. Estão todos cômodos nesta rotina em que pessoas importam pouco, vínculos quase não existem. Pior do que a dança das cadeiras de treinadores, é a sensação de que não criamos laços. Salários e multas rescisórias valem mais do que as relações humanas.

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