Notícias

Futebol e crise social: luta por direitos civis têm longo histórico de impacto esportivo na América do Sul


Na última terça-feira (05), o Flamengo se viu em meio a


tensões entre a população local e o poder executivo do Peru


na mais atual crise geopolítica da América do Sul. Entre notas do Governo e da Conmebol desmarcando ou confirmando a realização da partida,


o clube brasileiro acabou indo a campo pela Libertadores, onde venceu o Sporting Cristal


, em Lima. A manifestação dos peruanos, iniciada com uma greve de caminhoneiros e ampliada após o anúncio de um toque de recolher na capital do país, é mais um exemplo de movimento social e político no continente que acaba indo de encontro com o esporte, mais precisamente o futebol.

Apesar da situação surpreender pela alternância de decisões em um curto espaço de tempo, a decisão final acabou, mais uma vez, priorizando a realização da partida em detrimento à preocupação com a segurança e a efervescência social do país naquele momento. Um jogo de interesses que envolve não apenas as esferas governamentais e esportivas, mas também a paixão do torcedor.

Em cima deste episódio, o

LANCE!

conversou com Ariel Palacios, correspondente da GloboNews em Buenos Aires para assuntos sobre a América Latina, para entender o cenário ocorrido no Peru e também o histórico do continente sobre a relação entre o esporte, a política e os movimentos sociais.


AMÉRICA DO SUL, FUTEBOL E DITADURAS




Região formada por ex-colônias europeias, a América do Sul tem um histórico de lutas sociais. Os movimentos de independência no continente, principalmente a partir do início do Século XIX, já mostravam a criação de uma identidade nacional em cada país, de acordo com a cultura local. Décadas mais tarde, o futebol chega na Argentina, em 1867. No Brasil, o responsável por introduzir o esporte é o britânico Charles Miller, em 1894. No início do Século XX, o futebol seguia seu processo de expansão, porém ainda voltado para uma pequena parcela da sociedade, principalmente a elite.

Segundo Ariel Palacios, a popularização do esporte se deu principalmente após a I Guerra Mundial, entre os anos de 1920 e 1930. E é aí que a política entra. Para o jornalista, Benito Mussolini, ditador da Itália fascista entre 1922 e 1943, foi um dos pioneiros em fazer do futebol um instrumento de relação com o povo.

– O primeiro grande uso político do futebol vem em 1934, na Copa do Mundo da itália. Benito Mussolini usou a competição para fazer o clássico dos ditadores, o pão e circo. No caso, o futebol era como o circo. O ‘Duce’ fez de tudo para que a seleção italiana vencesse (e venceu) por aquele ufanismo nacional esportivo. A partir disso a coisa começa a ficar intensa – afirmou Palacios.

Na América do Sul, a relação entre a política e o futebol vem principalmente com a eclosão dos governos ditatoriais, a partir da década de 60. No Brasil (1964-1985), a conquista da Copa do Mundo de 1970 se tornou instrumento de propaganda, tendo como um dos episódios mais marcantes a demissão do técnico João Saldanha há dois meses da competição no México. O motivo? Para Saldanha, o seu posicionamento contra o regime militar. A Democracia Corinthiana, ocorrida no início dos anos 80, ficou marcada como um símbolo de resistência dos jogadores do clube paulista em prol da democracia, aderindo ao movimento das ‘Diretas Já’, campanha popular que buscava o retorno do direito ao voto para presidente no país.

Argentina (1976-1983) e Chile (1973-1990) também passaram por duros processos ditatoriais, com o futebol servindo como meio para persuadir a população e também como palco de tortura e mortes. No país vizinho, a Copa do Mundo de 1978 marcou para sempre a história hermana. Para Ariel Palacios, a realização do evento no país é o caso mais emblemático do continente.

– Os anos iniciais da ditadura foram os piores, massacres colossais. A Copa aconteceu nesse contexto. O governo militar usou a competição para fazer o ufanismo, exaltar o nacionalismo. Na mesma época, há poucos quarteirões de distância do Monumental de Nuñez, existia o maior centro de concentração e tortura da ditadura argentina. Na final contra a Holanda, os presos torturados estavam ouvindo os gritos de frenesi a dez quarteirões de distância do Estádio do River. A ditadura usou isso e a população foi em massa atrás – relembra o correspondente.

Já no Chile, o Estádio Nacional, em Santiago, foi usado como espaço para prisão, tortura e execução de opositores ao regime militar. Atualmente existe um memorial no local, que inclui a frase: “Um povo sem memória é um povo sem futuro”.

As décadas de 80 e 90 trouxeram as democracias de volta à América do Sul, porém, os movimentos sociais e políticos permaneceram atuantes e indo de encontro ao futebol.


MAIS PROTESTOS, FUTEBOL E A CONMEBOL

Fundada em 1916, a Confederação Sul-Americana de Futebol é a responsável pela organização dos principais torneios de clubes e seleções do continente. Atualmente, a entidade tem como foco a Copa Libertadores, a Copa Sul-Americana e a Copa América, suas três grandes competições. Porém, em 2001, a Conmebol ainda possuía a Copa Mercosul em seu cartel. Naquele ano, San Lorenzo e Flamengo disputaram a final, com os argentinos levantando o caneco, mas somente em 2002 (


relembre o episódio


). Isso porque o país vizinho amargava uma crise financeira considerada uma das piores de sua história, com o governo mergulhado em denúncias de corrupção.

Após o então presidente Fernando de la Rúa decidir adotar o estado de sítio, a população foi às ruas para protestar com panelas contra o mandatário argentino. Sem garantias quanto a realização da decisão, a Conmebol decidiu adiar o confronto.

Anos mais tarde, em 2019, novos problemas acarretados após manifestações populares, agora no Chile. O país, que receberia a decisão da Libertadores, enfrentou uma das maiores manifestações de sua história, com os chilenos protestando inicialmente contra o aumento dos preços nos transportes públicos em Santiago. A insegurança local e a preocupação de Flamengo e River Plate, finalistas daquela edição, pesaram na decisão de transferir a final para Lima, no Peru, onde o clube brasileiro acabou conquistando o bicampeonato da competição. Vale lembrar que a Conmebol tentou até o último momento manter o duelo no país chileno, apesar de todos os problemas (


relembre o episódio


).

A relutância da entidade máxima do futebol sul-americano parece ter surtido efeito no ano seguinte quando, em 2021, a Colômbia viu sua população tomar as ruas do país para protestar contra um protejo de reforma tributária. Aqui, o futebol encontrou a crise social em Barranquilla, mais precisamento no estádio estádio Romelio Martínez. América de Cali e Atlético-MG se enfrentavam pela 4ª rodada da Libertadores, em maio daquele ano. Do lado de fora, policiais, usando jatos d’água e bombas de gás lacrimogênio, entravam em conflito com manifestantes. Dentro de campo, quatro paralisações aconteceram devido aos efeitos do gás nos jogadores. Vale lembrar que as arquibancadas estavam vazias devido a pandemia da Covid-19. A decisão da Conmebol foi manter a partida, apesar do ocorrido. O Galo saiu vitorioso na ocasião (


relembre o episódio


)

No mesmo ano, outra questão foi a realização da Copa América 2020. A competição, que já havia sido adiada devido a pandemia da Covid-19, acabou sendo realizada no Brasil, após recusas de Argentina e Colômbia, originalmente as sedes do torneio. Com a 2ª onda da pandemia em alta, a população hermana demonstrou sua insatisfação através de pesquisa popular realizada pelo jornal La Nación e pela emissora TN, de Buenos Aires, onde 70% dos argentinos, incluindo eleitores do governo, apontavam que não queriam receber a Copa América naquela circunstância.

A Conmebol seguiu insistindo na realização do torneio, e acabou encontrando eco no Brasil (


relembre o episódio


), que topou receber a competição mesmo também apresentando graves números relativos à pandemia da Covid-19  – em maio de 2021, mês em que o país foi confirmado como nova sede, os registros eram superiores a 2 mil mortes por dia, segundo dados do governo federal.

Para Ariel Palacios, essas aceitações também contam com a parcimônia dos torcedores, ávidos por acompanhar seus clubes e seleções independente da circunstância.

– Elas (entidades governamentais e esportivas) não fariam isso caso não encontrassem um ambiente que possibilitasse agir dessa forma. É o fanatismo esportivo. Elas fazem isso pois sabem que existe uma massa de torcedores que vão seguir cegamente qualquer jogo que seja do alvo da torcida delas. São como ovelhinhas que aceitam as determinações da Conmebol. Você vê que uma boa parte da torcida apoia e aplaude essas decisões da entidade em insistir na realização dos jogos. Você acaba colocando em risco a vida dos próprios jogadores. Se é por uma questão financeira, cada jogador custa muito dinheiro. São riscos financeiros que a Conmebol força os clubes a correrem. Coisas totalmente absurdas, mas elas estão acontecendo – completou.


DE VOLTA AO PERU E POSSÍVEIS PERSPECTIVAS

A realização do jogo no Peru entre Sporting Cristal e Flamengo pela Libertadores trouxe novamente à tona a discussão sobre os limites entre esporte e política. Isso porque a partida, em tese, não poderia ocorrer por estar dentro de um horário no qual Pedro Castillo, presidente peruano, havia determinado o estado de emergência devido aos protestos populares. Porém, de forma surpreendente, mesmo após a confirmação por parte do próprio governo e da Conmebol sobre o adiamento do duelo, o confronto aconteceu.

Na visão de Ariel Palacios, houve uma sobreposição do evento esportivo em relação a esfera social.

– O Governo declarou toque de recolher das 2h da madrugada até meia noite. O jogo entre Sporting Cristal e Flamengo, no Estádio Nacional de Lima, entraria nesta faixa de horário. durante a madrugada, o Ministro da Justiça do Peru disse que não poderia haver o jogo pois o toque de recolher é para todos. O futebol não pode ficar acima da sociedade. Não pode ter uma exceção, um pessoal vindo do Olimpo (templo grego que era a casa dos deuses). Não pode passar por cima das leis. Por mais absurdo que fosse o toque de recolher, você não pode correr esse risco. O estádio está a mais ou menos 14 quarteirões do Palácio Presidencial onde estava tendo quebra-quebra – alertou o correspondente da GloboNews.

Mas será que há uma luz no fim do túnel para encontramos um caminho onde futebol, política e demandas sociais podem caminhar juntas? Para Ariel Palacios, ainda há uma longa estrada para a formação de uma consciência social mais firme e constante no esporte. O jornalista cita novamente as torcidas como o principal caminho para a transformação, principalmente pelo seu poder de mobilização junto à sociedade.

– Infelizmente não temos o apoio desse poder descomunal que são as torcidas. Elas são capazes de fazer uma vaquinha para juntar milhões para ir ver seu clube em Tóquio, por exemplo, mas não são capazes de juntar o mesmo dinheiro para ajudar alguém num processo por questões racistas, ou para combater o racismo. Só interessa ganhar, não interessa o resto. Não adianta fazer uma campanha nas redes sociais se não fizer algo que force os cartolas, as autoridades, a sentirem que a coisa é seria. Como digo, faz uma greve, não vamos nos jogos de futebol, por exemplo. Por que? Porque não existe outro tipo de medida que tenha um impacto real – finalizou.

Protestos Colômbia

Protestos na Colômbia, em 2021, afetaram duelo entre América de Cali e Atlético-MG em Barranquilla (Foto: JUAN BARRETO / AFP)

Link Original

E pra você que curte o mundo esportivo -- entre agora mesmo em Palpites GE e tenha sempre em mãos as melhores dicas de investimento no futebol brasileiro e internacional.